Por: Frei Betto
Dentro de mim há um imenso salão colorido por confetes e serpentinas e, entre tanto ruído, sinto medo. Medo dos fantasmas que me povoam, dos demônios interiores, dos anjos de asas quebradas. Beiro o abismo da ilusão e sou tomado por vertigens e, no entanto, não aspirei lança-perfume.
Quero o baile, a fantasia, a loucura insaciada dos que fazem desfilar em blocos seus desejos irrefreáveis. Arranco do coração uma por uma das máscaras de minha coleção: a do cínico, do farsante, do pusilânime. Quero-me nu, completamente nu, na passarela em que me exibirei pelo avesso: aversões e preconceitos, contradições e mesquinharias. Sairei de barro e sopro, tal qual Deus me pôs no mundo.
Estou ávido da batucada capaz de eriçar cada célula de minha pele e, na ponta dos pés, dançarei sobre o aro do pandeiro até que a cuíca me desperte a consciência. Abrirei a torneira de meu televisor e deixarei que escorra pelas escadas da casa toda a impotência das mulheres adornadas de falsa beleza e a prepotência dos homens que não sabem fortalecer a musculatura da alma.
Cessado o burburinho das ruas, esmaecidas as luzes, adormecidos os foliões, atravessarei sozinho o sambódromo e recolherei pelo chão as sombras das tristezas fantasiadas de alegria, das lágrimas contidas no ritual do riso, das ilusões defraudadas pela realidade. E deixarei ali os retalhos dessa descomplacência que me atordoa o espírito, na esperança de que a magia do próximo desfile exiba, em carro alegórico, essa represada voracidade amorosa.
Não irei atrás do trio elétrico, a menos que ele cesse o movimento, desligue o motor, emudeça a turba e, num gesto inusitado, faça do silêncio a matéria-prima da festa. É disto que preciso, avidamente: desfantasiar a subjetividade, escutar a própria intuição, deixar que esse cortejo que me habita ganhe as ruas, esvaziando-me de mim mesmo. Há demasiado entulho em minhas cavernas interiores.
Se por acaso me encontrar com Momo, hei de sugerir que se aposente. Carnaval já não é a festa da comilança que empanturra o estômago. São os olhos que, glutões, engolem sôfregos todos os seios e bíceps e coxas e nádegas e braços e pernas, sedentos de narcísico reconhecimento e imprimindo ao espírito o fastio irremediável, tão enjoativo quanto à certeza de que, das cinzas da quarta-feira, a fénix da esbeltez não renasce.
Se a bateria prosseguir ressoando em meus ouvidos, apelarei a Orfeu que me empreste a sua lira e me permita mergulhar nos mares subterrâneos de meu inconsciente. Aspiro pelo canto inebriador das musas e prefiro a agonia solene do órgão e a suavidade feminina da harpa aos sons desconexos dessa parafernália eletrônica que bem traduz minhas atribulações.
Carnaval é feito de momentos e eu, de tormentos. Devo fugir para alguma ilha deserta abscôndita no mar revolto de meu plexo solar ou fingir na avenida que os deuses do Olimpo vieram coroar-me? Ah, quem dera que eu pudesse trocar de caráter a cada nova roupa, rasgar os mantos lúgubres que não me protegem do frio, acreditar nessa inversão de papéis que me conduz à apoteose exatamente quando o show é obrigado a cessar.
Talvez eu entre numa roda de crianças piratas que roubem meu estorvo e peça à Colombina não mais que um piscar de olhos para alegrar meu Pierrô. Ao soar do apito, cantarei solo meu samba-enredo em homenagem ao Arlequim – esse retrato de mim.
Ao amanhecer, quando o exército da faxina adentrar, serei encontrado estirado no asfalto, cada pedaço espalhado num canto, à espera de que suas vassouras me juntem os cacos, cicatrizem-me as articulações, energizem os meus ossos e inflem a minha carne, até que eu consiga o mais difícil – fantasiar-me de mim mesmo. Ficarei tão leve que, com certeza, voarei sem asas, embriagado pela euforia que o Carnaval pressente mas não sente.
Sim, eu quero mais, quero um Carnaval que nunca cesse e seja tão sem limites que faça os mortos dos cemitérios sairem pelas ruas num infindável cordão, entoando loas à vida, e que o brilho do coração irradie tanta luz que traga aos meus olhos a cegueira para o transitório. Sejam ternas e eternas as minhas alegrias, distantes dos melindres fugidios, entregues às mais puras melodias, às mais inefáveis poesias.
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